quinta-feira, 21 de julho de 2011

Por que Exu é o primeiro?

Reginaldo Prandi

[autor de Mitologia dos orixás]

Para que os seres humanos possam viver bem neste mundo, é preciso estar bem com os deuses. Por isso os homens propiciam os orixás, oferecendo-lhes um pouco de tudo o que produzem e que é essencial à vida. As oferendas dos homens aos orixás devem ser transportadas até o mundo dos deuses, o Orum. O orixá Exu tem esse encargo de transportador. Também é preciso saber se os orixás estão satisfeitos com a atenção a eles dispensada pelos seus descendentes, os seres humanos. Exu propicia essa comunicação, traz suas mensagens, é o mensageiro. É fundamental para a sobrevivência dos mortais receber as determinações e os conselhos que os orixás enviam do Aiê. Exu é o portador das orientações e ordens, é o porta-voz dos deuses e entre os deuses. Exu faz a ponte entre este mundo e o mundo dos orixás, especialmente nas consultas oraculares. Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o trabalho de intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. Sua presença está consignada até mesmo no primeiro ato da Criação: sem Exu, nada é possível. O poder de Exu, portanto, é incomensurável.

O sacrifício é o meio através do qual os humanos se dirigem aos orixás, e o sacrifício significa a reafirmação dos laços de lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do Aiê e os habitantes do Orum. Sempre que um orixá é interpelado, Exu também o é, pois a interpelação de todos se faz através dele. É preciso que ele receba a oferenda, sem a qual a comunicação não se realiza. A relação homem-orixá tem como fundamento a materialidade do sacrifício, a concretude da oferenda. Isso é uma definição religiosa, um ponto de partida essencial na concepção africana do sagrado. A própria possibilidade do homem professar a sua religião de orixás — seja na África, no Brasil, ou noutro lugar — depende, pois, do trabalho de Exu.

Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe; não há segredos para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu não pode ter preferência por esse ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os outros deuses é seu caráter de transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança. Não é, pois, de se estranhar que seja temido e considerado perigoso, posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites. Assim, tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu. Exu carrega qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável, que se imagina, por conseguinte, ser dotado de caráter instável, duvidoso, interesseiro, turbulento e arrivista.

Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam, que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara.

Isso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de orixá difícil e perigoso, que os cristãos, erroneamente, reconheceram como demoníaca. Quando a religião dos orixás veio a ser praticada no Brasil do século XIX por negros que eram também católicos, todo o sistema cristão de pensar o mundo em termos do bem e do mal deu um novo formato à religião africana, no qual Exu veio a desempenhar outro papel. A visão “cristã” dos orixás confundiu Oxalá com Jesus, Iemanjá com Nossa Senhora, e outros santos católico com os demais orixás. Para completar o panteão afro-católico, sobrou para Exu ser confundido com o Diabo. Foi, portanto, o sincretismo católico que deu a Exu a identidade de um demônio. Mas essa identidade destorcida sempre foi católica, cristã, sincrética. Não tem nada de africana.

Pensam os que se acostumaram a ver os orixás numa perspectiva cristã (imposta pelo catolicismo e hoje reforçada pelo evangelismo) que Exu deve ser homenageado em primeiro lugar para não provocar confusão, para não bagunçar a cerimônia, como se ele fosse um simples e oportunista arruaceiro. É uma visão bem simplista e demasiadamente falsa. Ora, Exu é antes de tudo movimento e nada pode acontecer sem ele, nem mesmo em pensamento, sem movimento. Nada pode, portanto, se dar sem a interferência de Exu. Por isso ele é sempre o primeiro a ser homenageado: é preciso permitir o movimento para que o evento, seja ele qual for, se realize, seja para o bem ou para o mal. Esse movimento não é dotado de moralidade, nem poderia ser, pois se assim fosse o mundo ficaria paralisado. A vida é um pulsar permanente, e em cada passo, em cada avanço ou retrocesso, em cada mudança, enfim, Exu está presente. Tudo começa por ele; por isso ele será sempre o primeiro.

Bibliografia

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

ADÕ-IRÀN - Cabaça

Há um indubitável elemento de maldade em Exú, e por esta razão ele tem sido predominantemente associado a este contexto. Há quem diga que a força primordial de Exú neste mundo é armar emboscadas e criar situações dúbias, mas mesmo assim, não p0demos associá-lo ao "diabo". O que podemos reunir da nossa tradição é que ele toma o fazer travessuras como hobby, tal como
uma pessoa corrompida pelo poder que parece incontrolável; o sádico deleite em jogar suas forças de maneiras antipáticas e indiferentes. Cito que Exú não é a encarnação pessoal da maldade em oposição da bondade. Porém, é totalmente claro que os Yorubá colocam toda prática e tendência maléfica em seu agenciamento.
Quando uma pessoa comete alguma façanha que resulta em aborrecimento e prejuízo para si ou seu vizinho o Y orubá imediatamente diz:
EXú IO TI I
EXÚ IO NSÉ É
Exú é quem o agitou. Exú é quem o movimenta.
Talo de Mamona (Lara)- Porrete de Exú

As pessoas freqüentemente rezam:
KI A MÁ SE RI JÁ EXÚ
Que nós não experimentemos a batalha de Exú.
ou então:
EXÚ, MA XE MI, OMO ELOMI NIKI O XE
Exú, não me mova, é o filho de outra pessoa que você deve mover.
EXÚ EBORÁ - Força Caótica
Exú em seu estado EBORÁ pode ser enviado contra o inimigo. O método ritualístico de utilizar sua força destruidora é a seguinte:
O suplicante vai diante do assentamento de Exú, levando consigo azeite-de-dendê e adi "óleo extraído da noz do dendezeiro" que é a grande quizilia de Exú. O suplicante derrama azeite-de-dendê sobre o símbolo de Exú, dizendo:
- Exú, eu sei que esse é o seu alimento e assim eu trouxe para lhe oferendar, conceda-me o seu favor e a sua proteção.
A seguir derrama sobre Exú o adí e diz:
- Exú, eu sei que o adí é a sua grande quizilia e que não é o seu alimento. Não me atrevo a oferendá-lo. Mas fulano (diz o nome da pessoa inimiga) pediu para que eu trouxesse e lhe entregasse. Embora ele saiba que não seja o seu alimento, eu dou o adí em nome do fulano.
Após o ritual ser completado, Exú correrá para dar uma pancada em quem lhe mandou o presente de mau gosto. Todavia, deve o suplicante observar algumas precauções:
· não dormir enquanto não estiver certo que Exú completou o recado;
· ficar de plantão para quando Exú retomar de seu mandado;
· ter em mãos um frango novinho para oferendar à Exú e acalmar a sua ira, só assim estará livre para dar atenção a outros assuntos.
Mas supondo que o inimigo seja conhecedor de meios de defesa, tenha-se protegido contra os efeitos dessa magia e tenha desviado a ira de Exú, tudo fica muito complicado, porque o bastão de Exú desde uma vez levantado, não pode ser abaixado sem ser usado. O suplicante deve antecipar a probabilidade deste acontecimento e preparar uma oferta aceitável para Exú. Quando Exú é empregado dessa maneira é chamado de Sigidi e Elegbara.
EXÚ IMOLÉ - ORIXÁ
Neste estágio Exú é cultuado pelos Yorubá como sendo um orixá igual aos outros. Depositam toda a sua fé nas suas capacidades benevolentes e protetoras. Ele ocupa uma posição tutelar. É representado por um símbolo que é levantado no centro da cidade ou povoado, o que é repetido freqüentemente dentro de casa e em portas de templos onde se cultuam os orixás. As pessoas se dirigem a Exú religiosamente de forma que indica um bom relacionamento entre pai e filho. É chamado portanto, de Babá "pai". Existem pessoas chamadas EXUBIYI "filho de Exú", EXUGBA YI "aquele que é reivindicado por Exú" .
Há lugares onde festivais são realizados anualmente em seu nome. Em Ilê-Oluji esse acontecimento se dá em fevereiro, para marcar o cultivo anual da terra. Os Yorubá organizam esse festival para pedir as bênçãos de Exú para a lavoura, naturalmente acalmando-o para que tudo possa correr bem com o trabalho do fazendeiro durante o ano. Pois os Yorubá entendem que para tudo correr bem é necessário que o homem esteja intimamente ligado e harmoniosamente em contato com as vibrações positivas de Exú.
De todo os pontos que se olhe Exú, ele aparece com um caráter desconcertantemente versátil, é também extremamente caprichoso. Acredita-se que Exú tem duzentos nomes. Isso significa
que ele tem um caráter ardiloso e incerto, que não é fácil de se fixar. Ele pode ser chamado de:
LOGEMO ORUN
o indulgente filho do céu.
A-NLA-KALU
aquele cuja grandeza se manifesta em todo o lugar.
PAPA-WARA
o apressado, o súbito.
A-TUKA-MA-SE-E-SA
aquele que quebra em pedacinhos o que não pode ser reajuntado.

Conta na tradição que o seu primeiro lar na terra Yorubá foi OFÁ - a Ofá original, embora algumas vezes seja sugerido que foi Ketu. O seu culto predomina atualmente em Erin, perto de llobu. Ele é indubitavelmente uma das principais divindades dos Yorubá. Não há lugar onde ele não seja cultuado e propiciado. Seu altar pode ser em qualquer lugar: cidade, vila, povoado, moradia, encruzilhadas ou matas.

Asé!